https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/12/06/mercosul-ue-guerra-trump-e-china-fazem-sair-acordo-antes-impossivel.htm?cmpid=copiaecola
A história geopolítica de um acordo improvável
Por Jamil Chade
Foram necessárias uma guerra, uma ameaça protecionista, o avanço da extrema direita e um abalo geopolítico gerado pela China para um acordo quase impossível ser transformado em um pacto.
O anúncio do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia apenas aconteceu por conta de eventos extraordinários, fora do controle de ambos os blocos.
Se os europeus, por décadas, se recusaram a aceitar uma abertura mais ousada aos produtos do Mercosul, a guerra na Ucrânia mostrou a vulnerabilidade do abastecimento de alimentos do continente, mesmo sendo um importante produtor.
Também foi fundamental o resultado da eleição nos EUA. Para os europeus, ficou evidenciado o risco do impacto que a vitória de Donald Trump poderia ter ao comércio mundial. O republicano já prometeu aplicar tarifas contra aliados, inclusive europeus, sinalizou para uma nova guerra comercial para privilegiar seus negócios e um protecionismo aguerrido.
Dentro da UE, os negociadores também levaram em consideração o fato de que existe o risco real de que, num futuro próximo, a extrema direita chegue ao poder, com uma agenda nacionalista e que fecharia os espaços para um acordo.
A tudo isso se soma o desembarque da China como a maior potencial comercial do mundo, algo que poucos poderiam imaginar quando a negociações entre o Mercosul e a UE foi lançada. Em Bruxelas, uma das armas para pressionar por um acordo foi alertar aos países do bloco que, sem esse pacto de livre comércio, não haveria como jamais voltar a concorrer contra os produtos chineses.
Diante dessa transformação geopolítica, tanto os sul-americanos como os europeus cederam e aceitaram que pontos antes considerados como "inaceitáveis" pudessem ser acatados.
Grandes eventos mundiais, de fato, são responsáveis por iniciativas que, até então, poderiam ser consideradas como impensáveis. Foi das cinzas de um Holocausto que surgiu uma utopia do tamanho da ONU. Foram de duas guerras destruidoras que deram lugar ao maior projeto de paz dos últimos séculos: a UE, baseada na aliança entre os ex-inimigos franceses e alemães.
Em 2001, o lançamento das negociações para a Rodada Doha, na OMC, foi um produto direto do sentimento de solidariedade que o mundo sentiu depois dos ataques terroristas de 11 de setembro. O projeto jamais seria concluído.
Eu estive em 1999, quando os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Jacques Chirac anunciaram no Rio de Janeiro o início do processo. Alertaram, naquele momento, que seria um processo difícil. Mas jamais pensaram que duraria um quarto de século. O francês já morreu, vários dos embaixadores responsáveis pelo início daquela aventura já se aposentaram e outros morreram. Uma geração de negociadores passou pelos termos desse acordo.
Polêmico, o tratado não tem sua implementação assegurada. Para muitos, ele é ainda fruto de um mundo que acreditava que o livre comércio traria ganhos para todos. Os perdedores, hoje, mostram suas frustrações elegendo populistas, mentirosos, golpistas e a extrema direita.
Se o tratado for apenas mais um instrumento para beneficiar uma elite econômica de um ou outro lado do Atlântico, ele irá naufragar. Se o pacto conseguir distribuir renda, riqueza e sonhos, ele pode ser um marco.
A história dirá.