Na última aula (29/04), discutimos a resenha de E.T.A. Hoffmann sobre a Quinta Sinfonia (em Dó menor, Op. 67) de Beethoven, cuja estreia ocorreu em 1808, no Theater an der Wien, em Viena.
Discutimos a resenha de Hoffmann a partir do interessante artigo de Mário Videira, "Crítica musical enquanto teoria estética em E. T. A. Hoffmann". Nele, Videira apresenta as principais publicações que impactaram a crítica e a filosofia da música do período, as quais poderíamos ordenar da seguinte maneira:
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Burke, Edmund: Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1757);
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Sulzer, Johann: Allgemeine Theorie der Schönen (1771–74);
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Kant, Immanuel: Crítica da faculdade de julgar (1790);
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Schlegel, Friedrich: Athenäum, Frag. 116 (1798);
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Schiller: Poesia ingênua e sentimental (1800);
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Schiller: Sobre o sublime (1795–1801);
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Jean Paul [Johann Paul Friedrich Richter]: Vorschule der Ästhetik (1804);
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Wackenroder, Wilhelm Heinrich; Tieck, Ludwig: Phantasien über die Kunst (1814).
A resenha foi publicada no Allgemeine musikalische Zeitung em 1810 e representa um marco para a interpretação romântica da obra de Beethoven. Dividida em três partes, ela apresenta considerações estéticas na primeira e na última seções, intercaladas por observações de cunho analítico nas páginas intermediárias (da p. 24 à p. 42 da tradução brasileira em O Melófobo e a Quinta Sinfonia de Beethoven). [Nota: Hoffmann publicou uma nova versão da resenha, sem a parte analítica e com alguns acréscimos literários, na Kreisleriana, cuja tradução encontramos na tese de Beatriz Stervid: Entre ficção e crítica musical: tradução comentada da Kreisleriana, de E. T. A. Hoffmann, além de versões em inglês.]
Falamos sobre como Hoffmann, o escritor de contos fantásticos, associa a música à experiência do inefável (Unaussprechlich), do indizível e do incomensurável. A natureza inefável da música aponta, em primeiro lugar, para a natureza de sua matéria: o som, associado à experiência do etéreo, do abstrato e do espiritual, inapreensível pelos sentidos objetivos e físicos (notadamente a visão e o tato). Esse traço implica um distanciamento da música em relação às artes figurativas, nas quais se inclui a poesia.
Em segundo lugar, a natureza etérea da música implica sua predisposição ao infinito, ou seja, à experiência estética de dimensões ilimitadas, isto é, sem definição de contorno ou figura. Essa característica relaciona-se a noções que escapam à apreensão sensorial: por exemplo, o desconhecido (unbekannt), o indizível/inexprimível (unaussprechlich), o incomensurável (unermesslich) e o infinito (unendlich). Tal aspecto evidencia a conexão da música com a categoria estética do sublime, especialmente na formulação de Edmund Burke (ver artigo de Videira).
É interessante observar também como outras noções metafísicas pertencem ao mesmo campo semântico dessas expressões e são amplamente exploradas pela literatura fantástica de Hoffmann, na qual o “estranho” (Unheimlich) é símbolo das experiências de estranhamento em relação à vida e a nós mesmos. Por isso, o Unheimlich é associado ao que é “suprassensível”, “sobrenatural”, “espírito” e “fantasma”, por exemplo. A literatura fantástica torna objetivas, ou figuráveis, experiências naturalmente subjetivas: aquelas da interioridade dos afetos. É nesse sentido que Freud analisa, em Das Unheimliche (traduzido como O estranho, O infamiliar ou O inquietante), o conto O homem de areia (Der Sandmann), de Hoffmann, como símbolo de uma das manifestações do inconsciente (Unbewusste), particularmente a do recalcado.
A relação entre o “fantástico” e o romantismo é também formal: o gênero da fantasia musical permite uma associação frutífera com a noção de fragmento, típica da crítica literária romântica e presente já nos primeiros ensaios sobre música (ver, por exemplo, o Frag. 116 do Athenäum de Schlegel, p. 334 de Conversa sobre poesia [ed. Iluminuras], ou as Phantasien über die Kunst de Wackenroder e Tieck).
Na Quinta de Beethoven, o fragmento aparece no motivo principal e simples “tan tan tan tan!”, que marca fortemente a percepção do ouvinte, quase como um hit. Todavia, embora esse motivo possua certa autonomia e permita associações mesmo fora do contexto harmônico da sinfonia, ele reaparece ao longo da obra sob diferentes formas, estabelecendo um sentido de totalidade que se afasta dos padrões clássicos. Nesse ponto, vale a pena observar as considerações técnico-analíticas tanto de Hoffmann quanto de Videira.
A interpretação crítico-estética de Hoffmann sobre a Quinta consegue conciliar duas posições críticas dominantes na época: a primeira via a obra de Beethoven como resultado de um controle racional do compositor, em detrimento da espontaneidade criativa, o que tornaria suas composições difíceis e incompreensíveis; a segunda via Beethoven como um gênio selvagem, arredio a padrões e regras, cuja produção seria fruto da fantasia irracional, o que igualmente levava à incompreensão. Hoffmann considera a obra de Beethoven uma união coerente entre a reflexão profunda e ponderada sobre a harmonia e também sobre a vida, ou lucidez (Besonnenheit, nos termos de Jean Paul), com a disposição patética (páthos), irregular e selvagem de um típico gênio (nos termos de Diderrot e também de Jean Paul, ver artigo de Videira).
A importância da interpretação de Hoffmann consiste, por fim, em ter sido a primeira a associar a natureza sonora da música e sua relação com o sublime à realização estética do romantismo. Ou seja, não é esta ou aquela música que é romântica: a arte musical, enquanto tal, o é. Para Hoffmann, a realização suprema disso é a Quinta Sinfonia de Beethoven, justamente por mobilizar artisticamente todas essas características.
Não chegamos a mencionar em aula, mas a Quinta também concretiza o que ficou conhecido na literatura crítica como o C-minor mood de Beethoven, seu “humor em Dó menor”, associado à maturidade de seu estilo. Além da Quinta, apenas a Nona Sinfonia foi composta nessa tonalidade, embora diversas outras obras importantes estejam em tonalidades menores. A propósito da aula, vale destacar também a Sonata Pathétique (Op. 13), em Dó menor, além da popular Moonlight Sonata (Sonata n.º 14, Op. 27 n.º 2), em Dó sustenido menor.
A resenha de Hoffmann será importante para compreendermos a posição metafísica da música, de Arthur Schopenhauer.