"[...] a música supera toda arte que se prende ao visível, assim como o corpo é superado pelo espírito: pois ela é espírito, aparentado com a maior força interna da natureza: o movimento. O que não pode se tornar visível ao homem, o mundo do invisível, torna-se comunicável a ele através da música". (Herder, Kalligone, 1800).
Assim como Johann Gottfried von Herder, citado na epígrafe, outros pensadores pós-kantianos questionaram a consideração de I. Kant sobre a música, na Crítica da faculdade de julgar (1790).
No seu livro Die Idee der absoluten Musik (A ideia da música absoluta), Carl Dahlhaus apresenta marcos importantes da defesa pós-kantiana da autonomia formal da música que leva à defesa da música instrumental como expressão absoluta dessa autonomia. Em especial, Johann Triest e Christian Michaelis. Mario Videira, em seu artigo A recepção da Crítica do Juízo na literatura musical do século XIX (ver na nossa pasta), faz um apanhado dessas influências.
No artigo Sobre o fundamento da teoria do gosto (Über das Fundament der Geschmackenlehre) [publicado no periódico Allgemeine Musikalische Zeitung (Jornal Geral de Música), em 1801], Johann Triest apresenta algumas divergências importantes em relação a Kant. A partir da forma do juízo de gosto de Kant, Triest propõe uma distinção entre "música pura" e "música aplicada", identificando na música puramente instrumental 1) uma expressão formal pura e 2) a sua capacidade de cultivar as pessoas. Essa concepção destoa da original kantiana, pois, embora Kant reconheça a autonomia da música na parte formal que diz respeito à própria forma do ajuizamento estético, da linguagem dos sons, ele não concebe nenhum traço relevante de reflexividade e de cultura, isto é, de ampliação das faculdades.
Na Crítica do Juízo, a música é definida como "a arte do belo jogo das sensações" (die Kunst des schönen Spiels der Empfindungen, p. 222), um jogo menos adequado ao entendimento e à razão que às sensações do mero agradável. Assim, a música é posicionada em 2 arranjos distintos na hierarquia kantiana das artes, a depender do critério que se adote:
1) Se o critério for a atrativa movimentação do ânimo (Reiz und Bewegung des Gemüths), a música ocupa a segunda posição, depois da poesia, "é a que mais se aproxima dela" e, por isso, "pode a ela unida muito naturalmente" (§ 53, p. 226). Isso porque, ainda que fale através de "apenas sensações sem conceitos" (lauter Empfindungen ohne Begriffe), a música não se resume à "mera sensação do agradável" (bloß angenehme Empfindunge, § 51, p. 222), mas numa satisfação de outra ordem (Wohlgefallen) que resulta da simples forma do ajuizamento. Nesse sentido, a música também evoca ideias estéticas (ästetische Ideen) próprias por meio de uma linguagem própria (o som), a qual designa afetos que são comunicados por essas ideias e é, por isso, denominada de "linguagem dos afetos" (já Rousseau a definia assim). As ideias estéticas não são conceitos, pois não são determinadas, mas "um todo concatenado de uma plenitude inominável de pensamentos em conformidade com um certo tema" (§ 53, p. 227);
2) Se o critério adotado for, porém, a cultura que proporcionam ao ânimo (Gemüth), isto é, a ampliação das faculdades, a música ocupa o último lugar, abaixo das artes figurativas, pois joga apenas com as sensações. Ao contrário das artes figurativas e da poesia, o jogo estético da música não promove uma "urbanidade das forças cognitivas superiores". Isso significa que o jogo (entre imaginação e entendimento ou imaginação e razão) não é conforme ao entendimento e à razão no sentido de promover a unificação delas com a sensibilidade, ou seja, nem ampliam a experiência possível de forma duradoura e nem promovem a comunicabilidade de forma duradora, dada a natureza transitória e fugaz da impressão musical.
A acusação da falta de "urbanidade" da música se explica empiricamente no fato de que ela "estende a sua influência além do exigido (na vizinhança)" e, assim, "como que se impõe, prejudicando a liberdade dos outros", algo que as artes visuais não fazem, pois "basta afastar os olhos quando não se quer receber a sua impressão". É parecido com o que ocorre com um perfume que se espalha facilmente: "quem tira o seu lenço perfumado da bolsa trata todos em volta ou perto de si contra a própria vontade e os força a, se quiserem respirar, fruir o cheiro ao mesmo tempo" (§ 53, p. 228).
Triest discorda do segundo aspecto, isto é, da incapacidade ou capacidade limitada no cultivo das faculdades. Para ele, o fato da música expressar ideias estéticas inexprimíveis com palavras dá indício de sua superioridade em relação às outras artes, não de sua inferioridade: "se só se considerar como música genuína aquela que expõe de maneira determinada os sentimentos de um sujeito (ainda que este seja o fim original e mais elevado da música [a expressão de sentimentos]), então estariam condenadas todas as composições sem canto [...]; e todas, ou [pelo menos] a maioria das sonatas, fugas, concertos, sinfonias etc. seriam passatempos sem finalidade. Mas não: a música deleita e - com permissão dos filósofos - cultiva, ainda que não de maneira tão evidente como na igreja ou no teatro" (ver Videira, p. 192).
Christian Friedrich Michaelis, em seu ensaio Algumas ideias sobre a natureza estética da arte musical (Einige Ideen über die ästhetische Natur der Tonkunst), de 1801 aprofunda noções levantadas por Triest e, por isso, se tornará muito influente na estética da música romântica e na defesa da autonomia da música instrumental em relação à poesia. O filósofo também considera a música "uma linguagem imediata dos afetos", a arte dos corações. Diferente da poesia, a música tem como escopo "o coração humano, com seus sentimentos (Empfindungen) e a imaginação (Einbilgungskraft, um sentido interno) em sua ocupação com os afetos, e, por isso, comove imediatamente e sem mediação, no que reside sua vantagem. Por se tratar da dimensão interior de nossa experiência com os sentimentos, a música lida especialmente com o invisível (Unsichtbar): "o poeta interpreta e reúne em conceitos os grandes e belos sentimentos [...] com os quais ele pretende nos dar prazer, e procura comunicá-los [...] por meio das palavras. [...] O poeta nos mantém em conexão com o mundo visível, pois seus conceitos estão sempre em íntima relação com este; o compositor nos separa do mesmo, e nos entretém com o invisível" (Videira, p. 197).
Para Michaelis, a música não é mera arte do agradável, mas é bela arte porque envolve um trabalho de composição musical que articula melodia (que expressa o jogo dos sentimentos e forma a multiplicidade), harmonia e ritmo (os quais atribuem regra e, portanto, forma à multiplicidade desordenada). Trata-se da forma bela que agrada por si. Ademais, a indeterminação própria da música passa a ser abordada positivamente, na medida em que a sua indeterminação própria é o que favorece o estímulo à liberdade da imaginação do ouvinte: "algo que liberta e dá asas à imaginação, e a eleva acima das limitações da realidade" (Videira, p. 198).
Em um artigo intitulado Sobre o aspecto ideal da música (Ueber das Idealische der Tonkunst), de 1808, Michaelis afirma que a música é a "mais ideal e mais original" dentre as artes, numa inversão do que dissera Kant. Isso quer dizer que a música possui uma relação imitativa com o mundo que não é de cópia, uma vez que ela "não consiste numa mera imitação da natureza", mas produz "um mundo totalmente próprio", de modo que é em vão procurar um correspondente na realidade. Assim, "as obras musicais consumadas possuem seu valor não meramente porque elas representam ou significam algo outro, mas [possuem valor] nelas mesmas, em sua própria e incomparável essência". (Videira, p. 201).
Essas ideias reapareceram de maneira sistemática e decisiva na filosofia sistemática de Arthur Schopenhauer.