O governo Figueiredo, o último dos governos militares da ditadura no Brasil, foi marcado pela continuidade da abertura democrática gradual e controlada iniciada por Geisel. No entanto, é importante lembrar que seguiu sendo um governo autoritário, ainda marcado pela perseguição política, pela censura e pela tortura.
Diante do esgotamento do processo de industrialização por substituição de importações, tornou-se ainda mais vital ao Brasil defender seus interesses no exterior, o que somente seria viável por meio do desenvolvimento econômico e de uma certa autonomia nacional. Desse modo, a política externa de Figueiredo teve uma característica universalista, visto que buscou mercados não tradicionais e, por vezes, contrapostos à ideologia do Estado autoritário (Ferreira, 2006), priorizando uma diversificação de parcerias.
Dando sequência ao pragmatismo ecumênico de Geisel, a diplomacia de Figueiredo foi uma tentativa brasileira de ganhar maior espaço de negociação em um sistema dominado pelas grandes potências (Spektor, 2004). Essa lógica promoveu a aproximação com países da América Latina, África, Ásia e Oriente Médio, e mesmo de países socialistas da Europa Oriental (Ferreira, 2006).
Nesse contexto, Elis Regina grava em 1979 a composição de João Bosco e Aldir Blanc “O bêbado e a equilibrista”. A intenção inicial dos compositores era homenagear Charles Chaplin, falecido dois anos antes, visto que ele tratava de temas a favor dos “miseráveis” e, ao final de seus filmes, sempre trazia um horizonte de esperança. (Arruda, 2020)
Ainda, os compositores tinham amigos cujas famílias haviam sido desmanteladas pela perseguição do regime militar, que levara alguns de seus familiares a se exilar em outros países. Por esse motivo, decidiram transformar a canção em um protesto pela volta dos exilados e perseguidos sob a ótica de um personagem chapiliano, o bêbado (Arruda, 2020):
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
No trecho
E nuvens
Lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco louco!
o mata-borrão era um papel usado para remover manchas de tinta de caneta, fazendo “desaparecer” os erros de escrita (Arruda, 2020). Juntamente com a expressão “manchas torturadas”, se refere aos desaparecidos e torturados pelo regime militar.
O trecho
Meu Brasil que sonha
Com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora a nossa Pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil
se refere ao desejo do povo brasileiro pelo retorno dos exilados e perseguidos pelos militares. Além disso, “Marias e Clarices” faz alusão às mães e esposas dos presos políticos, sendo Clarice a viúva do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado pelo regime militar (Arruda, 2020).
O trecho final
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Azar
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar
traz um ar de esperança, mesmo que frágil (“na corda bamba”), de que todo esse sofrimento não seria em vão (Arruda, 2020). E de que a “esperança [era] equilibrista” porque sobrevivia a todas as adversidades do período com a certeza de que um dia as coisas seriam melhores (“o show de todo artista tem que continuar”).
A seguir, deixo os links da música e da letra.
Música: https://www.youtube.com/watch?v=Eeyg-360NA0
Letra: https://www.letras.mus.br/elis-regina/45679/
ARRUDA, Renata. Análise de O Bêbado e a Equilibrista, sucesso de Elis Regina. 2020. Disponível em: https://www.letras.mus.br/blog/analise-o-bebado-e-a-equilibrista/. Acesso em: 15 set. 2024.
FERREIRA, T. S. H.. A ruína do consenso: a política exterior do Brasil no governo Figueiredo (de 1979 a 1985). Revista Brasileira de Política Internacional, v. 49, n. 2, p. 119–136, jul. 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbpi/a/GH43s8tZQLTqkDNGZZ65tzL/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 15 set. 2024.
SPEKTOR, Matias. Origens e direção do Pragmatismo Ecumênico e Responsável (1974-1979). Revista Brasileira de Política Internacional, v. 47, n. 2, 2004, p. 191-222. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v47n2/v47n2a07.pdf. Acesso em: 11 set. 2024.