Das vozes ativas que lutaram e se expressaram contra a repressão e horror da ditadura militar vivida pelo Brasil dos anos de 1964 até 1985, é improvável não destacar e relembrar o artista Gilberto Gil. Ele, que enxergou na música uma forma de denunciar os abusos do período, é eternamente memorizado por sua luta e contribuição frente ao combate do regime.
Gil foi um dos artistas presos durante a ditadura no fim do ano de 1968 – governo de Costa e Silva, época em que a liberdade de expressão passou a ser censurada, após a decretação do Ato Institucional nº 5. Com o estabelecimento do AI-5, todo tipo de expressão artística que apresentasse uma narrativa contrária às do governo passaram a ser rigorosamente censuradas: músicas, teatro, cinema e qualquer espécie de arte que expusesse e criticasse o modelo político adotado.
Neste cenário, o uso de suas músicas como forma de protesto e resistência contra o regime autoritário desagradou o governo. Durante seu exílio, de 1969 até 1972 o cantor passou por Inglaterra e Londres, mas jamais deixou de acreditar na democracia brasileira e não mudou o seu caráter político e ativista.
Na sua luta pela democracia brasileira e garantia de direitos humanos, o ativista político buscou protestar centralizando suas letras na justiça social e na liberdade. Entre suas canções, destaco “Cálice”, canção que, inclusive, é cantada em conjunto com Chico Buarque, também ativista da oposição na época. Na música, ouvimos metáforas e duplos sentidos cantados que denunciavam a situação.
A letra expõe alguns dos sentimentos do cidadão comum, sem poder, na segunda metade da década dos anos 60:
“Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue.”
No refrão, a palavra “cálice” é usada tanto literalmente, quanto no duplo sentido. Primeiramente, refere-se a uma passagem bíblica: "Pai, se queres, afaste de mim este cálice" (Marcos 14:36). Ainda, usa-se do jogo de palavras para que “cálice” se entenda “cale-se”, para fazer referência à censura imposta à população do país que se opunha ao regime. Ouvindo a música completa, tudo fica mais claro pelo ênfase dado à palavra, quando cantada, que claramente expressa as dores de alguém que sobreviveu à experiência de alguns dos tempos mais sombrios da história do Brasil, numa época em que a opressão militar era rotina. A canção tornou-se um símbolo da heroica resistência que, mesmo em meio a um ambiente extremamente hostil, permaneceu lutando. Nos anos pós ditadura, Gilberto Gil se envolveu ainda mais com a política brasileira, chegando a ser Ministro da Cultura em 2003.
Link da música no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=ZiT_YHvUThw