Na minha formação, Sócrates sempre foi o herói da filosofia, o mártir da verdade contra a cidade injusta, como atestam três das quatro fontes históricas que comprovam sua existência: Platão, Aristóteles e Xenofonte. Aristófanes aparece como a quarta fonte — uma caricatura menor, quase nunca levada a sério. Basta ver em Nicola Abbagnano e outros manuais, que mencionam As Nuvensapenas de passagem, como prova da existência de Sócrates, não de seu caráter, e como curiosidade literária.
Fui muito tocado em minha fase iluminista por Condorcet, que, em plena Revolução Francesa, disse em assembleia: “os Aristófanes jamais vencerão os Sócrates”, quando consideramos não o presente, mas o quadro histórico do gênero humano. Condorcet foi perseguido, preso e morto pelos jacobinos pouco tempo depois.
Se trocamos a chave de leitura e pensamos a peça como expressão de um sentimento disseminado, no contexto da disciplina, refletindo sobre as crises da democracia, Aristófanes ganha outra dimensão.
Ele põe Sócrates como chefe de um phrontistérion (o “Pensatório”), cercado de alunos que medem pulos de pulga e fazem ginástica de argumentos para vencer causas injustas. Estrepsíades, endividado, corre ao “pensatório” para aprender a enganar credores.
Estrepsíades tenta convencer o filho Fidípides a estudar com Sócrates justamente para escapar das dívidas, mas o rapaz recusa. O velho decide então ir ele mesmo. Sócrates surge em cenas absurdas, estudando mosquitos, suspenso no ar dentro de uma cesta, como caricatura do filósofo que perdeu contato com a realidade. O coro das Nuvens é invocado como divindades que concedem inteligência e retórica aos homens. No centro da peça, aparecem os dois Discursos: o Melhor, que defende valores tradicionais, e o Pior, que ensina a vencer mesmo os argumentos mais injustos — e é este que conquista Fidípides.
O resultado é tragicômico: o filho passa a usar a retórica para justificar até agredir o próprio pai. No fim, Estrepsíades, arrependido, percebe que foi enganado e, em revolta, põe fogo no Pensatório de Sócrates.
Concedo: Sócrates pode ter se exposto demais. Não por “culpa” moral, mas por estilo, pela ironia, pelo distanciamento, pelo hábito de olhar “de cima” as crenças do povo. Para o público comum, tal figura podia ressoar como loucura e perigo; daí a leitura de ateísmo e corrupção da juventude. A própria tradição platônica registra que as acusações eram estas (“não reconhecer os deuses da cidade” e “corromper os jovens”), e o retrato aristofânico serviu de expressão do que crescia entre o povo, paradoxalmente tornando-se matéria-prima cultural para aprofundar o mal-entendido.
O problema talvez não seja Sócrates, mas a cidade mais democrática do mundo antigo aceitar transformar justiça em retórica, verdade em conveniência. A comédia expõe a fragilidade da democracia diante da manipulação moral: o que deveria ser busca do justo torna-se competição de discursos.
Nesse ponto, As Nuvens fala ao presente. A democracia não entra em crise porque faltam instituições, mas porque se perde em meio ao seu próprio fundamento: quando palavras já não importam para dizer como são as coisas e o cálculo de vantagens sobrepuja o da verdade. E quando alguém se ocupa, de maneira pública e imprudente, de questões alheias à democracia — filosofia moral e política, ciências naturais, fundamentos da arte — Aristófanes nos mostra, com palavrão, riso e exagero, sobretudo à luz do artigo do prof. Jean, que o risco de perseguição, difamação e morte se torna iminente.