Comentário à comédia As Nuvens

por Rafael Nogueira Alves Tavares da Silva (202500062) -

Na minha formação, Sócrates sempre foi o herói da filosofia, o mártir da verdade contra a cidade injusta, como atestam três das quatro fontes históricas que comprovam sua existência: Platão, Aristóteles e Xenofonte. Aristófanes aparece como a quarta fonte — uma caricatura menor, quase nunca levada a sério. Basta ver em Nicola Abbagnano e outros manuais, que mencionam As Nuvensapenas de passagem, como prova da existência de Sócrates, não de seu caráter, e como curiosidade literária.

Fui muito tocado em minha fase iluminista por Condorcet, que, em plena Revolução Francesa, disse em assembleia: “os Aristófanes jamais vencerão os Sócrates”, quando consideramos não o presente, mas o quadro histórico do gênero humano. Condorcet foi perseguido, preso e morto pelos jacobinos pouco tempo depois.

Se trocamos a chave de leitura e pensamos a peça como expressão de um sentimento disseminado, no contexto da disciplina, refletindo sobre as crises da democracia, Aristófanes ganha outra dimensão.

Ele põe Sócrates como chefe de um phrontistérion (o “Pensatório”), cercado de alunos que medem pulos de pulga e fazem ginástica de argumentos para vencer causas injustas. Estrepsíades, endividado, corre ao “pensatório” para aprender a enganar credores.

Estrepsíades tenta convencer o filho Fidípides a estudar com Sócrates justamente para escapar das dívidas, mas o rapaz recusa. O velho decide então ir ele mesmo. Sócrates surge em cenas absurdas, estudando mosquitos, suspenso no ar dentro de uma cesta, como caricatura do filósofo que perdeu contato com a realidade. O coro das Nuvens é invocado como divindades que concedem inteligência e retórica aos homens. No centro da peça, aparecem os dois Discursos: o Melhor, que defende valores tradicionais, e o Pior, que ensina a vencer mesmo os argumentos mais injustos — e é este que conquista Fidípides. 

O resultado é tragicômico: o filho passa a usar a retórica para justificar até agredir o próprio pai. No fim, Estrepsíades, arrependido, percebe que foi enganado e, em revolta, põe fogo no Pensatório de Sócrates.

Concedo: Sócrates pode ter se exposto demais. Não por “culpa” moral, mas por estilo, pela ironia, pelo distanciamento, pelo hábito de olhar “de cima” as crenças do povo. Para o público comum, tal figura podia ressoar como loucura e perigo; daí a leitura de ateísmo e corrupção da juventude. A própria tradição platônica registra que as acusações eram estas (“não reconhecer os deuses da cidade” e “corromper os jovens”), e o retrato aristofânico serviu de expressão do que crescia entre o povo, paradoxalmente tornando-se matéria-prima cultural para aprofundar o mal-entendido. 

O problema talvez não seja Sócrates, mas a cidade mais democrática do mundo antigo aceitar transformar justiça em retórica, verdade em conveniência. A comédia expõe a fragilidade da democracia diante da manipulação moral: o que deveria ser busca do justo torna-se competição de discursos.

Nesse ponto, As Nuvens fala ao presente. A democracia não entra em crise porque faltam instituições, mas porque se perde em meio ao seu próprio fundamento: quando palavras já não importam para dizer como são as coisas e o cálculo de vantagens sobrepuja o da verdade. E quando alguém se ocupa, de maneira pública e imprudente, de questões alheias à democracia — filosofia moral e política, ciências naturais, fundamentos da arte — Aristófanes nos mostra, com palavrão, riso e exagero, sobretudo à luz do artigo do prof. Jean, que o risco de perseguição, difamação e morte se torna iminente.

"As Nuvens" de Aristófanes - Uma reflexão

por Tiago Mazeti (202500052) -

A peça "As Nuvens", de Aristófanes, está centrada na relação de dois personagens: Estrepsíades, um nobre grego que está endividado devido à sua própria falta de controle e devido à personalidade (e vícios) do filho; e Sócrates, o filósofo grego, a quem o primeiro personagem apela para aprender a arte do discurso e assim conseguir convencer seus credores a não cobrarem suas dívidas livrando-se da possibilidade de perder os seus bens.

O que me parece central na peça é a forma como o conhecimento e os dois personagens principais foram retratados, sendo que o primeiro dá ao conhecimento um caráter utilitarista, de “coisa” que pode resolver o seu problema se bem ensinado e bem aprendido. Já o segundo personagem, Sócrates, que é retratado de forma crítica e burlesca pelo autor, demonstra preocupações com questões desligadas da realidade, mas, ao mesmo tempo, parece se colocar acima daqueles que não detém os mesmos conhecimentos que ele. Ambos, com suas intenções e ações, parecem se guiar por lógicas que estão distantes da realidade impedindo-os de estabelecer com ela uma relação mais estreita.

O que mais me chamou a atenção na peça foi a forma como Sócrates é retratado, como alguém que subverte os valores tradicionais. Vide o diálogo da página 27, no qual questiona “Vais jurar por quais deuses? Porque, em primeiro lugar, os deuses não são moeda corrente entre nós.” Parece haver no personagem um grande descaso por tudo que Estrepsíades leva como ser de “fora” para o Pensatório. Porém, a forma crítica e cômica com que o autor retrata o imediatismo de Estrepsíades também chama a atenção. Por exemplo, no diálogo das páginas 45 e 46:

SÓCRATES: Vamos, o que desejas aprender primeiro, agora, das coisas que nunca te ensinaram? Diz! Sobre a métrica, ou sobre os versos, ou ritmos? ESTREPSÍADES: Sobre a métrica por mim: pois há pouco fui enganado por um farinheiro em duas medidas. SÓCRATES: Não te pergunto isso, mas sim qual metro julgas mais bonito: o trímetro ou o tetâmetro? ESTREPSÍADES: As Nuvens Eu nada coloco acima da quarta de litro. SÓCRATES: Quanta bobagem! ESTREPSÍADES: Aposta agora comigo se o tetrâmetro não é uma quarta de litro. SÓCRATES: Vai para o inferno! Como és rústico e burro! Talvez pudesses aprender sobre os ritmos mais rápido.

O personagem Estrepsíades não consegue (porque não quer) ver nada além de seu objetivo imediato ou da bagagem cultural e intelectual que já tem. Talvez esse seja um ponto em que a peça se relaciona com o tema da disciplina: o cidadão de “carne e osso” do século XXI se mantém obstinado em atentar somente aquilo que confirma as convicções que já tem. Mas, seria isso ilegítimo? Várias referências da Ciência Política afirmam que os eleitores não têm uma noção muito “sofisticada” da política, da democracia, das posições políticas etc. Mas entendem bem quais são suas necessidades reais mais imediatas, ou, como afirmam Bowler e Donovan (1998) "Os eleitores, para usar uma analogia, podem saber muito pouco sobre o funcionamento do motor de combustão interna, mas sabem dirigir.” Os “Estrepsíades” têm direito de participação na democracia e apontam para aquilo que conseguem enxergar como forma de alcançar seus interesses. Teria isso gerado uma crise? Independentemente da resposta, a simples reflexão sobre essa questão nos levará a outras perguntas importantes sobre o tema.

Análise da comédia “As Nuvens”, de Aristófanes, a partir da proposta de leitura

por Lucélia de Ataide (202505661) -

Análise da comédia “As Nuvens”, de Aristófanes, a partir da proposta de leitura

Após a leitura da peça As Nuvens, de Aristófanes, surgem três pontos centrais para reflexão: (1) o que é essencial na peça, (2) o que mais chama a atenção e (3) como a obra se relaciona com o tema da disciplina “crises da democracia e conflitos morais”. 

No centro da narrativa está a figura de Estrepsíades, um cidadão endividado que procura em Sócrates — líder do Pensatório — a habilidade de persuadir seus credores e, assim, livrar-se das dívidas. Aristófanes constrói, por meio dessa trama, uma sátira à ascensão dos sofistas e ao pensamento filosófico emergente, representado por Sócrates. Esses pensadores são retratados como perigosos para a juventude e desestabilizadores dos valores morais e religiosos que sustentavam a sociedade ateniense. Disseminam uma educação que valorizava a retórica e o questionamento, vista como uma ameaça à ordem social e à própria democracia.

O que mais chama atenção na obra é o uso refinado do humor como ferramenta de crítica política e moral. Sócrates é retratado de forma grotesca e cômica: um filósofo que mede pulgas, estuda saltos de pernilongos e vive suspenso no ar para dialogar com as nuvens — imagem que simboliza sua aparente desconexão com o mundo real. Essa representação reforça a ideia de que o pensamento especulativo, quando desligado da experiência concreta, pode se tornar absurdo e até perigoso. Um ponto interessante é a própria ambiguidade da peça: embora critique os sofistas, Aristófanes também utiliza a retórica e a persuasão teatral para envolver o público, o que revela uma crítica autorreflexiva sobre o poder da linguagem e seus usos.

A comédia estabelece uma relação direta com o tema contemporâneo “crises da democracia e conflitos morais” em ao menos três dimensões. Primeiro, evidencia-se uma crise de autoridade moral: a Atenas da peça aparece dividida entre valores tradicionais — como o respeito aos deuses, à família e à tradição — e os novos modos de pensar, mais relativistas e centrados na argumentação. Segundo, há uma crítica à fragilidade da democracia diante da manipulação do discurso: se qualquer um pode convencer os outros por meio de falácias bem estruturadas, mesmo sem ter razão, a democracia corre o risco de se tornar refém da retórica vazia — o que se conecta, hoje, ao fenômeno das fake news, do populismo e da polarização. Por fim, a peça mostra a instrumentalização da linguagem: o discurso “injusto” ensinado no Pensatório representa o uso da razão não para buscar a verdade, mas para vencer a qualquer custo — uma preocupação atual nos debates sobre ética e comunicação na esfera pública.

Conclui-se, portanto, que As Nuvens é mais do que uma comédia da Antiguidade: é uma verdadeira arma cultural. Aristófanes apresenta um retrato crítico de um momento de transição profunda, em que os fundamentos da convivência coletiva estavam sendo questionados. A peça mostra como conflitos morais e disputas sobre o que é verdade podem provocar rupturas sérias em regimes democráticos. Esse tema permanece extremamente atual. Assim como na Atenas do século V a.C., hoje seguimos enfrentando batalhas ideológicas e simbólicas sobre os rumos da sociedade. Pensadores como Hannah Arendt e diversos sociólogos contemporâneos reforçam essa preocupação: a democracia não se sustenta apenas pelo voto, mas exige responsabilidade com a linguagem, ética no discurso e compromisso com a verdade.

Comentários As Nuvens e "Leo Strauss on The Problem of Socrates in The Clouds"

por Gabriel Calçada Barros da Silva (202500047) -

Em primeiro lugar, gostaria de destacar alguns aspectos que chamaram a minha atenção quando da minha primeira leitura da comédia. Na peça, Sócrates não professa seus ensinamentos em público, para toda a Atenas da época, pelo contrário, confina os seus ensinamentos apenas para os membros iniciados da sua instituição de ensino, o pensatório. Isso fica evidente no seguinte diálogo, quando Strepsíades bate pela primeira vez à porta do pensatório :

"Discípulo : Isto só pode ser dito aos condiscípulos. Strepsíades: Diga sem medo, pois venho ao pensatório para ser seu condiscípulo. Discípulo : Então vou dizer, mas é necessário manter essas coisas em segredo, como se fossem mistérios."

Ora, isso ecoa e dá razão para um ponto que  Strauss insiste bastante, de que os antigos possuíam uma visão inigualitária do ser-humano, de que não seriam todas as pessoas que possuem as predisposições necessárias para aprender filosofia. Consequentemente, o ensino desta não deveria ser destinado para o público geral, mas ensinado de forma esotérica, nos termos de Strauss,  para um público iniciado, realmente capaz de compreender esses ensinamentos. 

Interessante também é a forma como Aristófanes retrata o filósofo como predisposto ao ateísmo, questionando a existência dos deuses da cidade, de certa forma dando razão para os seus acusadores décadas mais tarde :

 " Mas você também jura pelos deuses? Para início de conversa, aqui entre nós não existe esta moeda. (..) Strepsíades : Mas você vai me dizer que Zeus Olímpico não é um deus? Sócrates : Que Zeus? Não Zombe de mim! Zeus não existe."

Igualmente, como aparece no artigo de Jean Castro,  é realmente impressionante como a comédia conseguiu  prever com uma precisão impressionante , quase profética, as acusações que se fariam vinte três anos mais tarde quando do julgamento de Sócrates: Corrupção da juventude( no caso o jovem Fidípides) e negação dos deuses da cidade( no caso, Zeus).

Num primeiro contato com a comédia, entendi que o seu objetivo seria o de criticar a filosofia, porém depois de ler o artigo de Jean Castro sobre a interpretação de Strauss sobre a obra, realmente entendo que ela pode retratar as consequências negativas do encontro da filosofia com a sociedade, ou da razão com o senso-comum. Essa interpretação de Strauss é realmente verossímil , embora a mim pareça que em certos momentos da peça Aristófanes busca retratar a filosofia com lentes bastante negativas.

Uma relação possível com o tema da disciplina, à luz da interpretação de Strauss sobre a comédia, seria a constatação de que o mundo social convencional não é regido plenamente pela razão, ao contrário, nele predomina antes o apelo à emoção, de forma que a retórica se mostra decisiva. Assim, a democracia consistiria mesmo num regime trágico, como se afirmou, sujeito à ação de demagogos que podem encaminhar a polis para um mau caminho com a utilização maliciosa da retórica.

 

Resposta

por Tuliana Fernandes Rosa (202505667) -

O centro da peça é uma crítica ao poder da retórica de moldar percepções e inverter valores sociais. Ao colocar Sócrates como chefe de um Pensadouro ridículo e ao contrapor o discurso melhor e o discurso pior, Aristófanes mostra como o discurso pode ser usado não para revelar a verdade, mas para construir narrativas capazes de convencer e influenciar o coletivo.

 Esse é justamente o aspecto que mais me chamou a atenção, pois no marketing político, gestão de crise, na construção de reputação e redes sociais, a percepção é de extrema importância. Assim como Estrepsíades queria aprender argumentos apenas para enganar credores, hoje, é necessário utilizar estratégias de comunicação para modelar a opinião pública, criar imagens e narrativas favoráveis e, muitas vezes, legitimar o injustificável.

 A peça mostra que a disputa não é apenas sobre fatos, mas sobre como eles são comunicados e interpretados. Na democracia ateniense isso acontecia pela oratória nos tribunais e na Assembleia; na democracia atual, esse embate acontece também nas redes sociais, onde a velocidade e a viralização dos discursos potencializam a capacidade de moldar percepções coletivas.

 Portanto, o que é central em As Nuvens conecta-se diretamente ao campo em que atuo: a comunicação política estratégica. Aristófanes já revelava que quem domina a palavra domina a percepção — e isso continua sendo a chave do poder político hoje. Quem detém a narrativa, detém a atenção. Com isso, constrói conexões, influencia e engaja o eleitorado, transmitindo valores, prendendo a atenção da audiência e gerando simpatia pela persona pública.