Os textos de Nietzsche convergem na crítica à verdade e à moral como construções humanas, sem fundamento transcendente, o que ele dramatiza na ideia da “morte de Deus” em A Gaia Ciência. Em Sobre Verdade e Mentira, mostra que as verdades são convenções linguísticas fixadas pelo uso. Em Além do Bem e do Mal, denuncia o peso dos preconceitos morais na filosofia e chama à superação desses limites por “espíritos livres”. Chama a atenção o impacto dessa visão sobre a linguagem, a perda do eixo espiritual da civilização e a tentação de crer que a razão substitui o sagrado. Isso se conecta com a disciplina Crises da Democracia porque ajuda a pensar a erosão de fundamentos éticos comuns, a relativização da verdade como raiz de discussões atuais, o predomínio de disputas de poder por trás de discursos e instituições, e o niilismo político que mina a confiança na democracia liberal.
Fórum 4
Leia e comente os textos da bibliografia básica desta semana:
● NIETZSCHE, F. Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Aforismos §124, §125, §343, §344, §347, §354, §355.
● NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira em um sentido extra-moral. São Paulo: Hedra, 2008.
● NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Prólogo, Aforismos §1 a §23, §34, §36, §202.
1. O que é central nos textos?
2. O que chamou a sua atenção?
3. Como relacionar com os temas centrais da disciplina?
Democracia e verdade - reflexões a partir de Nietzsche
O central nos textos de Nietzsche é a crítica que se faz à moral e às verdades criadas pelo ser humano. O autor afirma que as verdades são ilusões cuja condição de ilusão é esquecida pelo ser humano. Alimentamos estas ilusões para que elas cumpram a função de dar sentido às nossas vidas. Na página 31 do texto “Sobre verdade e mentira em um sentido extramoral”, Nietzsche parece querer explicar que a linguagem, ou as linguagens, não expressam a verdade, mas sim uma versão daquilo que constituímos e passamos a entender como verdade. A palavra, ou as palavras, expressam aquilo que sentimos, pensamos e refletimos sobre a “realidade em si” que é totalmente inapreensível para nós. No entanto, no afã das revoluções burguesas, o ser humano, tomando como procedimento medir todas as coisas pelos seus próprios feitos, aumentou a carga social que é colocada sobre os pilares seculares. Isso gera uma fragilidade: criamos a ilusão da liberdade, como se a “imensidão do horizonte estivesse ao nosso alcance”, contudo não percebemos que navegar em direção a essa imensidão de possibilidades nos distancia da terra firme e da segurança que ela proporciona. E mais, como indivíduos, podemos navegar em direções diferentes, mas como enfrentar as adversidades impostas pela fúria do mar sozinhos?
O que mais chamou atenção nos escritos de Nietzsche, foram as críticas que ele faz à capacidade do ser humano, que é limitada, de apreender a realidade. Mas não conseguimos escapar da tendência de “tomar as metáforas pelas próprias coisas”. Interessante a ideia de que as palavras que criamos para representar as coisas “são apenas metáforas das coisas e que, portanto, não correspondem à sua essência”. Tal afirmação merece uma análise mais aprofundada.
Nesta perspectiva, creio que estes escritos de Nietzsche se relacionam com a disciplina caracterizando-se como ferramentas para pensar as verdades que criamos, o alcance que tomaram e como elas influenciam no dissenso atualmente. É mais fácil organizar a sociedade diante de crenças que são comuns a todos, mas e quando grupos diferentes podem criar suas próprias “metáforas” e agir de acordo com elas? E quando há contradição entre elas? E quando elas causam conflitos, quem tem autoridade ou permissão para apontar caminhos de resolução? O que significa lidar com estes imbróglios em uma democracia sem depreciá-la e, portanto, sem simplesmente cair na tentação de forçar um dos grupos a submeter-se ao outro?
Comentário Nietzsche - Gabriel Calçada
1 - Central nos textos é a ideia de que a superação da religião, ao contrário do que supunham muitos pensadores iluministas, pode trazer também uma série de desafios, inseguranças e preocupações. A principal dificuldade seria a expressa por Nietzsche, a de passar a navegar em mares abertos "nunca antes navegados", virtualmente infinitos, onde não se dispõe de tantas orientações.
2 - Sendo esse o meu primeiro contato com a obra de Nietzsche, chamou a minha atenção o seu estilo aforístico e literário. Ele poderia ter sido, se quisesse, um poeta ou um romancista, sob certa perspectiva, ele não o deixa de ser.
3 - Se Nietzsche nos oferece uma interpretação correta, então o que chama de "morte de Deus", ou seja, o processo de laicização no mundo ocidental, o "desencantamento do mundo", em termos weberianos, de fato trouxe uma série de benefícios, no entanto, ela foi acompanhada também, ao contrário do que supunham os iluministas mais otimistas sobre esse processo, de uma série de desafios. O principal deles, que refere Nietzsche na Gaia Ciência, seria o de que, junto com as religiões, cai por terra também toda uma série de crenças, valores e morais a elas associadas. Assim, como afirma o próprio Professor Jean Castro na ementa da disciplina, sem um fundamento religioso comum, não é mais possível um consenso moral. Assim, a modernidade secularizada abre caminho para os dissensos e conflitos morais particularmente intensos que vivenciamos na atualidade.
Nietzsche e a crítica às certezas
O ponto central dos textos do Nietzsche é a crítica às verdades absolutas e à moral tradicional. Em A Gaia Ciência, ele traz a ideia da “morte de Deus”, que não é só sobre religião, mas sobre a perda de um fundamento que sustentava valores e certezas da sociedade ocidental. Em Sobre verdade e mentira em sentido extramoral, ele mostra que a verdade não passa de uma invenção humana, feita de metáforas e convenções que a gente acaba naturalizando. Já em Além do Bem e do Mal, ele vai mais fundo, criticando a filosofia, a moral e a ciência por acreditarem demais na objetividade. Para ele, tudo isso está ligado a uma vontade de poder. Em resumo: Nietzsche quer tirar o chão das certezas e mostrar que não existe verdade neutra nem moral eterna.
O mais impressionante é como Nietzsche consegue ser direto e radical. Quando ele fala da “morte de Deus”, fica claro o quanto isso muda tudo: sem esse “Deus” como referência, os valores perdem o alicerce. Outra coisa que chama atenção é a ideia de que a verdade nada mais é do que metáforas que foram repetidas tanto, que a gente esqueceu que eram metáforas. E também a coragem dele em dizer que a moral não é algo universal, mas uma construção histórica, cheia de disputas e interesses.
Nietzsche ajuda a pensar que nada é tão “neutro” ou “natural” como às vezes parece. Instituições políticas, por exemplo, não se sustentam por uma verdade eterna, mas por acordos, símbolos e narrativas construídas ao longo da história. O comportamento político também pode ser visto como fruto de disputas de poder e interesses, e não só como algo racional ou previsível. Já as políticas públicas, que muitas vezes são apresentadas como técnicas e imparciais, na prática também envolvem valores, escolhas morais e conflitos. Nietzsche, nesse sentido, nos faz desconfiar das certezas e enxergar a política como um espaço de criação, disputa e interpretação.